Devo deixar claro que, embora seja meu
interesse central considerar neste texto saberes que me parecem indispensáveis
à prática docente de educadoras ou educadores críticos, progressistas, alguns
deles são igualmente necessários a educadores conservadores. São saberes
demandados pela prática educativa em si mesma, qualquer que seja a opção
política do educador ou educadora.
Na continuidade da
leitura vai cabendo ao leitor ou leitora o exercício de perceber se este ou
aquele saber referido corresponde à natureza da prática progressista ou
conservadora ou se, pelo contrário, é exigência da prática educativa mesma
independentemente de sua cor política ou ideológica. Por outro lado, devo
sublinhar que, de forma não-sistemática, tenho me referido a alguns desses
saberes em trabalhos anteriores. Estou convencido, porém, é legítimo
acrescentar, da importância de uma reflexão como esta quando penso a formação
docente e a prática educativo-crítica.
O ato de cozinhar, por
exemplo, supõe alguns saberes concernentes ao uso do fogão, como acendê-lo,
como equilibra par mais, para menos, a chama, como lidar com certos riscos
mesmo remotos de incêndio, como harmonizar os diferentes temperos numa síntese
gostosa e atraente. A prática de cozinhar vai preparando o novato, ratificando
alguns daqueles saberes, retificando outros, e vai possibilitando que ele vire
cozinheiro. A prática de velejar coloca a necessidade de saberes fundantes como
o do domínio do barco, das partes que compõem e da função de cada uma delas,
como o conhecimento dos ventos, de sua força, de sua direção, os ventos e as
velas, a posição das velas, o papel do motor e da combinação entre motor e
velas. Na prática de velejar se confirmam, se modificam ou se ampliam esses
saberes.
A reflexão crítica sobre
a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria
pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo.
O que me interessa agora,
repito, é alinhar e discutir alguns saberes fundamentais à prática
educativo-crítica ou progressista e que, por isso mesmo, devem ser conteúdos
obrigatórios à organização programática da formação docente. Conteúdos cuja
compreensão, tão clara e tão lúcida quanto possível, deve ser elaborada na
prática formadora. É preciso, sobretudo, e aí já vai um destes saberes
indispensáveis, que o formando, desde o princípio mesmo de sua experiência
formadora, assumindo-se com sujeito também da produção do saber, se convença
definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua produção ou a sua construção.
Se, na experiência de
minha formação, que deve ser permanente, começo por aceitar que o formador é o
sujeito em relação a quem me considero o objeto por ele formado, me considero
como um paciente que recebe os conhecimentos-conteúdos-acumulados pelo sujeito
que sabe e a são a mim transferidos. Nesta forma de compreender e de viver o
processo formador, eu, objeto agora, terei a possibilidade, amanhã, de me
tornar o falso sujeito da "formação" do futuro objeto de meu ato
formador. É preciso que, pelo contrário, desde os começos do processo, vá
ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se
forma e re-forma ao formar e quem é formado formase e forma ao ser formado. É
neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar
é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo
indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus
sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de
objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao
aprender. Quem ensina ensina alguma coisa a alguém. Por isso é que, do ponto de
vista gramatical, o verbo ensinar é um verbo transitivo-relativo. Verbo que
pede um objeto direto - alguma coisa - e um objeto indireto - a alguém. Do
ponto de vista democrático em que me situo, mas também do ponto de vista da
radicalidade metafísica em que me coloco e de que decorre minha compreensão do
homem e da mulher como seres históricos e inacabados e sobre que se funda a
minha inteligência do processo de conhecer, ensinar é algo mais que um verbo
transitivo-relativo. Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi
aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que
era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos
tempos mulheres e homens perceberam que era possível - depois, preciso -
trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou,
em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de
aprender. Não temo dizer que inexiste validade do ensino de que não resulta um
aprendizado em que o aprendiz não se tornou capaz de recriar ou de refazer o
ensinado, em que o ensinado que não foi apreendido não pode realmente aprendido
pelo aprendiz.
Quando vivemos a
autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de uma
experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica,
estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência
e com a serenidade.
Às vezes, nos meus
silêncios em que aparentemente me perco, desligado, flutuando quase, penso na
importância singular que vem sendo para mulheres e homens sermos ou nos ternos
tornado, como constata François Jacob, "seres programados, mas, para
aprender". É que o preciso de aprender, em que historicamente descobrimos
que era possível ensinar como tarefa não apenas embutida no aprender, é um
processo que pode deflagrar no aprendiz uma curiosidade crescente, que pode
torná-lo mais e mais criador. O que quero dizer é o seguinte: quanto mais
criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e se
desenvolve o que venho chamando "curiosidade epistemológica", sem a
qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto.
É isto que nos leva, de
um lado, à crítica e à recusa ao ensino "bancário", de outro, a
compreender que, apesar dele, o educando a ele submetido não está fadado a
fenecer, em que pese o ensino "bancário", que deforma a necessária
criatividade do educando e do educador, o educando a ele sujeitado pode, não
por causa do conteúdo cujo "conhecimento" lhe foi transferido, mas
por causa do processo mesmo de aprender, dar, como se diz na linguagem popular,
a volta por cima e superar o autoritarismo e o erro epistemológico do
"bancarismo".
O necessário é que,
subordinado, embora à prática "bancária", o educando mantenha vivo em
si o gosto da rebeldia que, aguçando sua curiosidade e estimulando sua
capacidade de arriscar-se, de aventurar-se, de certa forma o
"imuniza" contra o poder apassivador do "bancarismo". Neste
caso, é a força criadora do aprender de que fazem parte a comparação, a
repetição, a constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente
satisfeita, que supera os efeitos negativos do falso ensinar. Essa é uma das
significativas vantagens dos seres humanos - a de se terem tornado capazes de
ir mais 13 além de seus condicionantes. Isto não significa, porém, que nos seja
indiferente ser um educador "bancário" ou um educador
"problematizador".
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